domingo, 18 de octubre de 2015

DE QUAL CIDADE SE APROPRIAM OS POBRES?

DOSSIÊ AMAZÔNIA

A lógica dos grandes projetos irradiou-se para o interior das metrópoles amazônicas. Assim, as cidades de
 Belém e Manaus, nos dias atuais, têm na infraestrutura urbana um meio de ampliar divisas em âmbito local
 e global, mesmo que para isso as relações sociais e culturais sejam alteradas de forma drástica e arbitrária
por Sandra Helena Cruz
(Vista aérea de construção da ponte de 3,6 km sobre o Rio Negro entre Manaus e Iranduba)
A Amazônia emergiu no cenário da história mundial como uma região de grandes amplitudes culturais,
 políticas e econômicas. Tratava-se de um lugar com uma vasta floresta tropical, rica e “intocada”.
 Seu processo de ocupação por homens e mulheres que chegavam atraídos pelo potencial
 econômico que
 a região possibilitava ignorou por completo as populações nativas que viviam em harmonia com a
natureza. A paisagem natural foi sendo transformada por ações que rapidamente devastaram a
 flora e
a fauna específicas, os povos nativos foram sendo dizimados e substituídos por significativos
contingentes de pessoas vindas de todas as regiões do país e do exterior.
Nesse período, o tempo das cidades amazônicas acompanhava o movimento estabelecido pela dinâmica
do trabalho na floresta – manual e com recursos artesanais –, que ia desde a extração dos recursos
naturais
 para a economia de subsistência até a comercialização interna de seu excedente. Tanto a literatura
nacional
como a regional revelam que no século XIX e em meados do século XX a região amazônica contava
 apenas
com pequenos núcleos ou aglomerados urbanos, configuração que só seria alterada com os primeiros
investimentos urbanísticos feitos nas cidades de Belém e Manaus, preparando-as para a nova dinâmica
 capitalista de base industrial no Brasil.
O modelo de desenvolvimento urbano adotado, entretanto, explica-se pelo lugar que o urbano
 tomou no processo de acumulação do capital, em que as cidades se tornaram grandes expressões
 territoriais para o crescimento econômico na Amazônia, resultante das políticas governamentais de
crédito e de incentivos fiscais enquanto elementos facilitadores para a atração de novos projetos
 econômicos. Nesse sentido, a adoção do modelo de grandes projetos econômicos e de
infraestrutura1
 na Amazônia data dos anos 1970 e 1980, quando o governo federal, ao cumprir sua agenda de
 industrialização e de pagamento da dívida externa, verificou que seria possível gerar novas divisas para
 o país, por meio da exploração dos recursos naturais existentes na região. Chegou-se a falar de
“enclaves” econômicos e de uma “urbanização da fronteira”, na tentativa de compreender as
 transformações que ocorreram nessa região, de acordo com a lógica desses grandes projetos,
 introduzidos segundo a concepção de uma modernização conservadora, que ao nortear a ação
governamental não considerou as particularidades e especificidades regionais, como as que fazem 
parte da região amazônica, com forte presença de populações tradicionais com hábitos socioculturais
específicos.
Contraditoriamente, contudo, a lógica dos grandes projetos irradiou-se para o interior das metrópoles
amazônicas,
 que foram reestruturadas com base em grandes projetos urbanos, fundados em investimentos de
 infraestrutura, passando a agregar maior valor econômico ao território. Assim, Belém e Manaus, nos
 dias atuais,
por estarem submetidas a processos de transformação regidos pelo modelo de “cidades estratégicas”,
 têm na infraestrutura
urbana um meio de ampliar divisas em âmbito local e global, mesmo que para isso as relações sociais e
culturais
sejam alteradas de forma drástica e arbitrária. É o caso dos projetos Portal da Amazônia, em Belém e o
Programa de Saneamento Ambiental dos Igarapés Manaus (Prosamim), em Manaus.
Nessas cidades, as áreas que receberão infraestrutura urbana graças aos grandes projetos urbanos
 tendem a se tornar lugares valorizados economicamente, atendendo ao mercado de moradias e
 desorganizando a vida social e cultural das áreas de intervenção. Em Belém, a melhoria habitacional,
 enquanto objetivo do Portal da Amazônia, restringe-se às ações de remanejamento de grande parte da população atingida. São trabalhadores ribeirinhos que terão a vida afetada e moradores que
 passarão a
 ocupar lugares mais distantes; as áreas incluem ainda os portos e trapiches públicos, de uso
 popular e ameaçados de extinção, pois são serviços e circuitos que não fazem parte da
 intervenção urbanística
 que ora acontece nessa cidade.
Em Manaus, o Prosamim, ao modificar as áreas centrais da cidade, embelezando-as, reproduz
 um novo
processo de periferização, deslocando as famílias atingidas para conjuntos habitacionais distantes,
construídos com a finalidade de reassentá-las. Aquelas que “optam” por permanecer nas unidades
habitacionais construídas nas áreas denominadas “solo criado” a partir do aterramento dos igarapés
devem ser capacitadas para habitar o novo lugar, adaptando-se à nova moradia. Trata-se de construir
 uma “nova etiqueta urbana” que ajude a manter o padrão concebido para essas moradias, dando
 ainda mais conteúdo à segregação que agora não só fragmenta e divide a cidade, mas também
cria estigmas: dos pobres que vieram das palafitas e não sabem viver no centro da cidade limpa,
saneada e embelezada.
A fisionomia dessas cidades é, portanto, reconfigurada para torná-las atrativas para novas relações socioeconômicas e culturais. A lógica prevalente é a do modelo de planejamento estratégico,
 assentado em conceitos e técnicas do planejamento empresarial. Tais medidas, contudo, ao
produzirem novos centros urbanos, desarticulam relações construídas historicamente, como
aquelas ligadas diretamente à questão da moradia. São relações de vizinhança, atividades
 econômicas, manifestações culturais, práticas associativas etc., que são desagregadas,
dando lugar ao progresso e à modernidade, em que tudo que é antigo, velho ou tradicional
passa a ser decadente, precisando ser extirpado, afastado, eliminado, para dar lugar ao novo,
 limpo, belo e moderno. A política urbana, então, ao garantir melhorias e infraestrutura urbana,
paradoxalmente assegura as condições necessárias à produção da cidade espoliativa,
 excludente e segregativa. A cidade do capital. 




Sandra Helena Cruz
Assistente social, doutora
 em Ciência Socioambiental
 e docente adjunta da Faculdade
de Serviço Social da
Universidade Federal do Pará.

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